sexta-feira, 20 de maio de 2011

LETRAS EM PENA (III)


Existência

Existem muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo
Pessoas falando
Pássaros voando, aviões planando
Gente dormindo, gente acordando
Comendo, morrendo, nascendo...
Tudo isso em um único mundo, em um único instante
Eu, aqui...
A luz passa cega meus olhos
Não posso seguir até a cegueira passar
A luz passa ilumina meus pensamentos
Devo seguir para o fim inevitável
Monóxido, câncer, despedida, fuligem
Gás, verde, ferro, asfalto
Concreto, cyber, expresso, global
Bolsa, subir, cair, nascer, morrer
A gora existe
Em breve não existirá.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Senador Inácio Arruda requer Campus da UFC em Russas!

Senador Inácio Arruda
(PC do B - CE)

A população de Russas pediu e o senador Inácio Arruda (PCdoB-CE) atendeu.  O PL 223/2011, de sua autoria, autoriza o poder executivo a implantar o campus no Vale do Jaguaribe. Há duas semanas, um movimento organizado pela sociedade civil reuniu centenas de pessoas no município, a 165 quilometros de Fortaleza, para solicitar a construção de um campus da Universidade Federal do Ceará naquela cidade.

“Para universalizar a educação também é necessário interiorizá-la. Russas é a maior cidade do Vale do Jaguaribe, detém uma rede de serviços que facilita a implantação de uma universidade e ainda possui uma localização privilegiada facilitando o deslocamento de milhares de estudantes de toda a região. Além disso, o município se compromete em arcar com parte da infraestrutura, doando um terreno de 52 hectares”, ressaltou Inácio Arruda.

Assessoria de imprensa do gabinete do senador Inácio Arruda


Fontes:



 
 

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Mundo a Fora do Teatro (II)

Jerzy Grotowski
Palestra de 8 de julho de 1974. TNC - Rio

O texto que se segue é a palestra proferida por Grotowski em 8 de julho de 1974, no Teatro Nacional de Comédia, Rio de Janeiro.
Palestra de Jerzy Grotowski Tradução e Transcrição de Yan Michalski*

Eis-me, portanto, diante de vocês, perguntando-me a mim mesmo de que devo falar. Este é sempre um momento bastante difícil para as duas partes.
Existe uma certa quantidade de questões e de assuntos sobre os quais falei tantas vezes. Se a gente repete as coisas, mesmo aquelas que pertencem à nossa própria fé ou à nossa própria esperança, essas coisas começam a morrer.
Então, não é possível dizer sempre as mesmas coisas, ainda que sejam importantes. Vou pedir-lhes, portanto, desculpas por não lhes dar informações detalhadas sobre o desenrolar do nosso trabalho de 15 anos para cá, porque perguntas a este respeito me são feitas em toda a parte, então já as respondi demais.
Prefiro, em vez disso, colocar-me uma pergunta sobre o que vocês podem estar pensando a respeito de uma possibilidade de comunicação entre nós.
Bem entendido, é difícil adivinhar; mas, numa curta medida, é possível. Por exemplo, é provável que muitos de vocês estejam pensando que é difícil a gente se entender, levando em conta as diferenças de cultura, de condicionamentos, de forças de circunstâncias, de situações - tudo isso.
E creio que muitos de vocês devem estar pensando que por causa dessas diferenças que existem entre os países e as culturas, no fundo nada pode ser trazido de uma parte do mundo a uma outra parte do mundo. Isto, creio, é uma observação que está no ar.
Mas, aqui está: os mesmo problemas existem no relacionamento entre os indivíduos. Ou seja, na medida em que cada um de nós é diferente, que cada um tem a sua própria vida que só a ele pertence, que cada um leva consigo as formas das feridas, das alegrias, dos medos, das inquietações que lhe são próprias - como, então, poderíamos compreender-mos, mesmo se pertencemos à mesma cultura? No fundo, só existe uma única possibilidade: a de afirmarmos que apesar de tudo que nos separa, é possível uma certa ponte, uma certa comparação das situações, das vidas, das experiências, e isto tanto entre os indivíduos como entre as culturas. Ou então, vamos dizer que cada indivíduo é diferente dos outros, e não há conexão possível.
Mas neste caso, ainda que a constatação fosse verdadeira, a única coisa que se poderia fazer seria não dizer nada. Se nos encontramos aqui, isto significa que apesar de tudo existe uma certa fé de que é possível transcender as diferenças.
Gostaria de passar agora a um outro problema, o problema do mundo moderno, do mundo atual.
É verdade que cada um de nós vive dentro do seu próprio contexto de existência, e é verdade também que cada um leva consigo as experiências de sua própria vida.
É verdade, ainda, que as diferenças entre as culturas existem de fato.
Mas ao mesmo tempo existe uma espécie de ser vivo, num nível que podemos chamar de planetário; ou talvez, simplesmente, apenas no nível de nossa própria civilização.
Mesmo se acreditamos que a curto prazo tudo é diferente, se formos encarar as coisas numa perspectiva mais histórica, vamos descobrir que esse enorme e complexo organismo da civilização moderna existe em toda a parte, apesar da diversidade das formas sob as quais se revela; e que ele existe em certas evoluções ou em certas involuções, dependendo das situações históricas.
Em certos períodos da história, a humanidade acredita-se em transição.
Os homens ficam cheios de esperança, surge, se levanta e engloba o grande agrupamento humano.
Pode-se dizer que a humanidade, nesses períodos, não está atomizada. Como poderíamos chamar esse tipo de períodos?
Podemos chamá-los de épocas de transição, podemos chamá-los de épocas de evolução, podemos usar diversos nomes. Mas é exatamente nesses períodos de transição que estamos expostos a cair facilmente em muitas ilusões. Estamos expostos a cair na ilusão de que essa esperança comum que nos impulsiona nesses períodos vai arranjar soluções para todos os problemas; de que as forças das circunstâncias que existem, e nos englobam, e nos condicionam, podem ser rompidas unicamente por causa dessa esperança. Estamos predispostos, ainda, nesse tipo de períodos, a esquecer que cada coisa comporta as suas próprias conseqüências e as suas próprias responsabilidades. E então estamos predispostos a fazer bobagens que numa outra época a gente terá que pagar.
Após cada período de transição - pudemos ver isso, por exemplo, na nossa cultura dos anos 60 - segue-se um período, digamos, de destransição, uma espécie de parada, de reestruturação, até mesmo um passo para trás.V E é exatamente nesse tempo entre as duas transições que as pessoas se atomizam; é em toda a parte que podemos observar isso. Quando, recentemente, estive em Sydney , alguém me disse:
"Há alguns anos, Sydney era uma cidade onde gente podia ver as pessoas se encontrarem na rua, mesmo as pessoas que não se conheciam se encontravam, encontravam alguma coisa, queriam fazer alguma coisa, estavam cheias de esperanças nas coisas que podiam ser feitas. E agora, já é uma outra atitude que está no ar As pessoas preferem trancar-se em casa, com alguns amigos; estão longe uma das outras."
É provável que o mesmo fenômeno poderia ser constatado na América, na Europa, nos domínios da cultura ou da civilização, e nos domínios, simplesmente, da vida e do mundo em geral.
É neste ponto, precisamente, que quero referir-me a uma das ilusões que dizem respeito diretamente à vida artística e teatral.
Podemos ter a nossa própria vida, nosso próprio passado diferente do passado dos outros. Alguns de nós experimentaram a miséria, a fome, o perigo da vida. Este foi, por exemplo, o caso de minha infância durante a guerra.
Alguns de nós vieram de camadas sociais bastante baixas, outros, digamos, das camadas mais ricas, mas apesar de tudo, na nossa qualidade de pessoas que se ocupam de cultura, pertencemos inevitavelmente a certos círculos.
Forçosamente, queiramos ou não, somos privilegiados.
Em toda parte. Apesar de tudo que nos possa incomodar, apesar de todos os obstáculos, apesar de todas as forças das circunstâncias, somos, num certo sentido, privilegiados.
E então, por sermos privilegiados, temos consciência pesada e dizemos a nós mesmos: "O que fazer para todos? O que fazer para ajudar uma grande quantidade de pessoas?
E se nos colocarmos esta pergunta sem estarmos conscientes de que é a nossa consciência pesada quem está falando, podemos facilmente cair numa ilusão: em vez de criar, em vez de realizar - mesmo dentro de nosso estreito círculo que é precioso - um relacionamento entre pessoas, se é isto que alguém quer podemos acabar fazendo uma arte que será uma espécie de jornalismo, de arte da atualidade, e podemos acabar acreditando que isto vai modificar a vida objetiva.
Mas isto não modifica nada, pois a vida objetiva tem as suas próprias forças. A vida objetiva é mais forte. A arte do jornalismo se concretiza lá onde ela não é eficaz. Onde seria eficaz, ela não se pode concretizar.
Não há como sair deste círculo vicioso; é preciso compreender isso. O resultado é que com muita facilidade arranjamos uma consciência limpa.
Falamos em mergulhar dentro da multidão, mas esse mergulho é infrutífero, e então vamos alimentar cada vez mais ilusões dentro de nós mesmos. E quando alimentamos ilusões, num certo momento começamos a fazer concessões.
A gente é vulnerável. A força das circunstâncias existe em toda a parte no nosso mundo moderno. E em toda parte existem obstáculos e dificuldades, se quisermos fazer algo que seja uma expressão plena e verdadeira de nós mesmos.
Porque esta é a lei do mundo. Essa força das circunstâncias pode assumir diversas formas. Ela pode ser suave, ela pode ser cruel, pode ser hábil ou sem habilidade - mas ela existe.
Para dar-lhes um exemplo: em certos países a arte é subvencionada, e portanto os artistas de teatro não tem peocupações no sentido de ganhar seu pão de todo o dia, ou seja, eles podem viver das subvenções que recebem.
Nos outros países, onde a arte não é subvencionada, os profissionais de teatro se dizem obrigados a correr do teatro para a televisão, da televisão para o rádio, porque eles precisam ganhar a vida.
Acontece que na minha terra a maioria dos atores faz a mesma coisa; e isto porque aquilo que recebem para viver não é suficiente para viver ricamente; e a fraqueza da natureza humana faz com que se queria viver num nível melhor, mais alto, ter mais posses; em vez de resistir a essas tentações de se dispersar e desconcentrar, prefere-se correr o risco.
As pessoas preferem trabalhar em vários lugares, ter mil ocupações, e acabam trabalhando muito pouco em cima de seu próprio métier.
E não é que não tenham de que viver, mas é porque não tem de que viver muito bem.
Essa mesma força das circunstâncias existe lá onde o nível de vida da população é muito alto, por exemplo nos Estados Unidos. Lá, o nível médio de vida é muito alto, como vocês sabem, e mesmo aqueles que se dizem pobres são relativamente ricos em comparação com os habitantes de outros países. Bom.. mas eles se dizem pobres.
Então, mais uma vez, coloca-se o mesmo problema: é muito difícil encontrar alguém que queira trabalhar por um longo período, renunciando completamente às outras ocupações, mesmo se já acumulou condições materiais suficientes para viver, mas viver num nível até certo ponto simples.
Bem entendido, eu estava me referindo a forças de circunstâncias que são suaves, que são unicamente materiais. Existem as outras.
Mas pode-se dizer que qualquer pessoa que quer fazer alguma coisa tem de enfrentar uma certa escolha, a escolha de saber o que se deve fazer.
Não se pode nunca ter as duas coisas ao mesmo tempo. Não se pode nunca ter(ou, pelo menos, não se pode nunca correr atrás de) uma certa riqueza, uma certa melhoria do nível de vida, e, ao mesmo tempo, fazer aquilo que se gosta de fazer.
Infelizmente é preciso escolher. Ou felizmente, é preciso escolher.
Acontece às vezes que se escolhemos aquilo que gostamos de fazer, acaba-se depois tendo também todas as outras coisas.
Mas com igual facilidade pode-se também perder tudo. Tudo é frágil e provisório.
De qualquer modo, há necessidade de uma certa escolha e, junto com esta há a necessidade de uma espécie de ascese. Isto é inevitável.
Cheguei agora ao ponto em que e deve colocar a pergunta:
O que é que a gente quer?
E, certo, em que eu devo colocar a mim mesmo a pergunta:
O que é que eu quero?
Se eu me faço publicamente esta pergunta, o que é que eu quero então há certas respostas que as pessoas esperam de mim:
que eu quero modificar o mundo, que devo querer dar ao mundo mais justiça e mais bens, resolver os problemas da infelicidade ou da crueldade que existem no mundo.
Em última instância, que devo simplesmente mudar a vida, a vida de todos.
Mas isto é impossível.
Eu não mudarei essas coisas.
E se alguém quisesse mudar a vida de todo o mundo, esse alguém seria talvez uma pessoa muito perigosa.
Em que medida podemos mudar a vida, eis a questão.
É uma questão de eficiência; e se pudermos mudar a vida de um modo geral, devemos fazê-lo. Mas não se consegue fazê-lo através da arte.
De qualquer maneira, existe a questão de saber até que ponto se pode, ao mudar a vida, mudá-la para melhor.
No entanto, dentro de cada um de nós existe a esperança e a vontade de fazê-lo mas é essencial sabermos que não é através da cultura que se realiza isso, quero dizer, não através de um caminho tão indireto como é o da cultura.
Através da cultura, é verdade, pode-se falar a propósito das modificações do mundo.
Através da criação pode-se falar como mudar a vida, as estruturas, a civilização, como tornar o mundo melhor. Mas "falar a respeito" não modifica nada. Lamento.
Pode-se, então, fazer arte, ocupar-se de cultura, por causa de um certo prestígio que isso confere, e para criar uma imagem objetiva, um pouco mítica, de nós mesmos.
Eu consegui isso em determinados momentos, quando apareceu um certo personagem chamada Grotowski, cuja imagem existe em diversos países, um personagem mítico, provavelmente alguém que descobriu um método eficiente no domínio da arte.
Ele conhece a chave da criação, e em certos momentos pode fazer uma espécie de milagre profissional.
Este personagem não tem nada a ver comigo, mas tem a sua própria vida que me ajuda.
Se ele não existisse, ninguém pagaria a minha passagem para eu vir para cá.
Pode-se dizer que a bordo do avião que me trouxe havia dois passageiros: aquele personagem mítico, aliás digno de estima, e eu, que sou outro.
Desembarquei como uma única pessoa. Mas, no fundo, ter construído esse personagem, não em plena consciência, quem sabe inclusive em plena inconsciência, foi, numa certa época da minha vida, uma coisa importante para mim.
Eu tinha um forte medo de não existir - vocês compreendem - e até mesmo, num certo sentido duvidava que eu fosse ser real. Então quis existir aos olhos dos outros.
Primeiro, aos olhos dos meus colaboradores.
Então me tornei um diretor muito rigoroso, que impunha as leis, as maneiras de trabalhar.
A seguir, aos olhos da sociedade, de certos meios da sociedade.
Eu quis me construir, sem me dar plenamente conta de que o estava fazendo, e acabei construindo. E quando terminei a construção, dei-me conta de que tudo isso já era uma história passada, que não me dizia mais respeito.
E no fundo durante todo o período em que estava construindo o personagem eu estava procurando outra coisa.
Exatamente quando me dei conta de ter construído um personagem, e que essa ação havia sido uma espécie de exorcismo em cima de mim mesmo, percebi também aquilo que na verdade eu estava procurando.
Devo voltar mais uma vez àquilo que é a imagem do mundo ou a imagem da nossa civilização em geral, e repetir de novo que existem as diferenças de circunstâncias e também, sempre, as forças de circunstâncias.
Dentro do quadro dessas forças das circunstâncias, cada um pode começar por se ocupar de si mesmo, por querer viver de modo a estar de acordo consigo mesmo.
Mas quem quiser fazê-lo na solidão, cairá numa espécie de auto-hipnose.
Pode-se então pertencer a uma seita, fazer exercícios de meditação, partir para o deserto, romper todos os laços com os outros homens, e construir uma imagem, ou deixar sair de dentro do nós uma imagem de uma realidade que transcende a nossa realidade terrena, cotidiana.
Podemos criar raízes nessa realidade e viver dentro dela. Mas, no fim, trata-se sempre de uma ilusão, porquanto sendo filhos da terra, estamos condenados a viver na terra.
Porquanto tendo nascido no meio dos outros, estamos condenados a viver no meio dos outros. Para viver no meio dos outros, pode ser útil afastar-se do outros, mas é preciso retornar.
Então, quando dizemos que através do terreno da cultura não se modifica a vida, pode-se responder que cada um pode modificar a sua própria vida até certo ponto; mas mesmo esta resposta não é exata, pois ninguém pode mudar a sua própria vida sem mudar a dos outros.
As coisa estão sempre relacionadas.
É provável que uma fonte oculta que me conduziu durante anos, sem que eu a estivesse identificado, foi a necessidade de duas coisas.
Por um lado, de ultrapassar a solidão. Ela pode existir em diversos níveis. Uma pessoa pode estar dentro de uma família e, não obstante estar cumprindo todas as tarefas que comporta a vida familiar, pode, infelizmente, sentir-se sozinha.Isto acontece. Numa enorme multidão pode-se estar só.
Estamos condenados a uma certa noção de solidão, porque cada um de nós se forma a si mesmo.
Quando queremos sair dessa solidão, dizemos: "vou ao encontro das pessoas, vou de encontro de todos os seres humanos"
É como se alguém dissesse: gosto de todos os seres humanos." E isto não é verdade. Porque se eu gosto de todos, como disse tão bem Dostoievsky, não gosto de ninguém.
Pouco me importa se alguém me ama, quando ele ama a mim, a um outro, a um outro, e a um outro ainda. Isto equivale a uma espécie de indiferença.
Não estar só significa encontrar seres semelhantes; procurá-los e encontrá-los.
Aqui se coloca o seguinte problema: é possível encontrar seres semelhantes a nós mesmos em outras culturas?
Por um lado, as outras culturas encontram-se todas dentro dessa enorme esfera, dessa coisa vaga mas ao mesmo tempo coerente que é a cultura moderna.
Por mais complexas que sejam as suas raízes, todos nós pertencemos, apesar de tudo, a uma só cultura, no sentido mais amplo da palavra. Mas existem diferenças nacionais, existem mesmos diferenças continentais; todos nós sabemos.
Trabalhei com pessoas de diferentes nacionalidades e de diferentes culturas.
A maior parte da última época de minha vida, nos últimos 10 anos, passou-se nas estradas do nosso planeta, em diversos países, no meio de pessoas diferentes, e através de três diferentes maneiras de viajar: ou com um dos meus colegas, com o nosso grupo; ou, como agora, num certo sentido como um convidado oficial; ou ainda como um simples vagabundo que viaja de carona ou a pé, conhecendo assim uma verdadeira imagem do continente que quer ver.
Tendo trabalhado em diversos países, acabei ficando com a seguinte impressão: as diferenças mais fortes que existem entre as pessoas das diversas nacionalidades e culturas são as diferenças que existem entre as convenções por trás das quais as pessoas se escondem.
Vou dar-lhes um exemplo. Isto se passou numa época da minha vida quando eu era relativamente bem jovem ainda, e estava trabalhando na Royal Shakespeare Company.
Quem me havia convidado e estava trabalhando como meu tradutor era uma pessoa de quem eu gosto e a quem estimo enormemente: Peter Brook.
Antes do primeiro encontro com os atores ingleses da Royal Shakespeare Company, Peter Brook me alertou para o fato de que para os ingleses eu era uma espécie de animal exótico.
Eu vinha de um país longínquo, da Europa Oriental, e tinha um nome conhecido, mas ao mesmo tempo não era verdadeiramente alguém da casa ou seja, da Inglaterra. Então num certo sentido, eu era um pouco vago, assim como, por exemplo, dervixe.
Pode-se ter muita estima por um dervixe, mas ele é um dervixe, não é um homem do nosso meio. Pode-se fazer uma recepção com um dervixe no meio do salão mas, ainda assim, sabe-se perfeitamente que este é alguém que...bem...então Brook me disse:
"É nos primeiros dias, nos três ou quatro primeiros dias, que as coisas vão se esclarecer. Eles vão pôr você à prova."
E foi o que exatamente ocorreu. Eles me puseram à prova, mas ao mesmo tempo, como eu estava prevenido, eu também os pus à prova. E o resultado foi que o trabalho funcionou bem.
Qual era a impressão que eu tinha de alguma coisa que fosse específica dos ingleses?
Era a mesma que me foi transmitida pelos atores: eles querem evitar o ato verdadeiro. Isto é uma coisa bastante humana, bastante natural.
Um ato verdadeiro, um ato que engaja toda a nossa natureza, é uma coisa pela qual se paga um preço caro. A gente quer evitar isso. Prefere dar um jeito de outro modo.
Então, eles mentem de maneira perfeita, quer dizer, são capazes de imitar os processos verdadeiros das reações humanas a tal ponto que seria necessário termos uma espécie de microscópio para descobrirmos que a coisa não é verdadeira.
Mas quando descobrimos, os interrompemos, e dizemos:
"Não, eu não estou acreditando no que você está fazendo", então eles agem como kamikases, mergulham de cabeça para baixo, e fazem milagres.
Eles têm uma certa maneira de se comportar a frio, com uma espécie de distanciamento. Se não sabem o que fazer, se não querem se revelar, então simplesmente se dominam.
Em muitos países de cultura latina se dá justamente o contrário.
Para se esconderem, as pessoas se mostram espontâneas; elas dizem: "nós somos sinceros, somos amistosos"; elas se tocam, se acariciam, conversam de uma maneira muito aberta, conversam a respeito de tudo, são todas muito indiscretas, porque transbordam de emoções.
Esta é uma outra maneira de representar. Assim como para nos escondermos podemos se distanciar, assim também, podemos procurar um tipo de espontaneidade produzida, fabricada.
Quando a gente está na França, percebe que lá o modo de se esconder consiste em intelectualizar.
Você começa a dizer ou a fazer qualquer coisa, e logo o francês com quem você está trabalhando se põe a formular isso de uma maneira muito cartesiana, muito inteligente, faz muitas perguntas, e assim evita o ato verdadeiro.
Se vocês acreditam que com os poloneses se dá outra coisa, estão enganados. Os poloneses têm uma certa maneira que... para mim é difícil falar a propósito dos poloneses, é mais fácil falar dos outros.
Mas tenho certa suspeita de que a maneira polonesa de se defender contra a sinceridade consiste em retardar, ou seja, as pessoas retardam o mais possível o momento de fazer coisas verdadeiras. É só no último momento que a gente dá o pulo do gato e então, muitas vezes, faz algo admirável.
Mas quanto tempo e trabalho perdido até que isso se produza. Há certos países onde uma certa disciplina imposta, externa, é importante.
Quando trabalhamos com os alemães, devemos ser muito rigorosos, pois é justamente nesse rigor, nessa disciplina, nessa ordem que eles encontram a sua própria maneira de evitar a sinceridade.
Tudo isso me conduz a uma conclusão bastante importante.
Apesar de todos os nossos condicionamentos, o que mais nos distingue são as maneiras de representar na vida real. Se pararmos a representação, o que é bem difícil e raro nos tempos que correm, teremos superado as diferenças.
Estaremos ainda condicionados pela história, pelas nossas feridas, pelos nossos medos, pelas nossas esperanças.
Mas, apesar de tudo isso, seremos semelhantes.
Acontece que toda a civilização é uma grande formação de representações (e uso aqui o verbo representar no sentido inglês de to act, to perform).
Vivemos representando papéis; o tempo todo representamos papéis. Então, a maneira de representar os papéis passa a pertencer à diferença entre as culturas.
Pois existem certas maneiras de representar papéis que não são aceitáveis em determinadas partes do mundo. Consideremos um outro problema, que não é um problema de diferenças nacionais, mas um problema de diferenças entre os sexos.
Os homens e as mulheres tem a mesma facilidade de chorar. Tem as glândulas que constituem a fonte das lágrimas construídas do mesmo modo.
Para as pessoas que tem uma formação tradicional, os meninos quando enfrentam uma situação difícil não choram. As meninas choram.
Por que? Porque é isto que é aceitável.
O menino, para evitar o ato verdadeiro, pode esconder-se numa espécie de furor, de irritação, de racionalização, de palavrório, de intelectualização, de procura de compreensão.
A menina pode chorar.
Numa sociedade tradicional, se um menino chora, as pessoas acreditam que isso não é normal, então é coisa reprimida, e ele passa a não querer mais chorar. Mas para a menina, chorar é natural, então ela se esconde por trás das lágrimas.
Na realidade, porém, trata-se unicamente de uma convenção.
Será que isso quer dizer que fora das convenções somos todos semelhantes?
Não, somos todos diferentes. Mesmo dentro de cada sociedade e de cada país, somos todos diferentes uns dos outros.
Então, se queremos encontrar as pessoas junto com as quais possamos superar a solidão, devemos provavelmente fazer-lhes duas perguntas.
A primeira é: você que parar de representar?
E a segunda: você tem as mesmas necessidades que eu?
Aparentemente, tudo isso está muito longe do trabalho propriamente teatral, técnico.
Na realidade, tudo que acabo de dizer é um produto direto das experiências artísticas.
Houve na minha vida o período em que, para construir, como uma imagem forte, esse personagem mítico de metodólogo, eu quis dirigir, lançando mão da totalidade da criação.
Veio depois um outro período, quando descobri que isso não passava de uma espécie de fraqueza, que se tratava de uma espécie de representação e de idéias preconcebidas.
Comecei então a procurar aquilo que pode acontecer entre os seres humanos tais como são na verdade.
Pode-se dizer que nesse período renunciei a ser criador eu mesmo, para dar aos outros a possibilidade de se tornarem criadores.
Foi nesse período que apareceu o termo "teatro pobre". Isso queria dizer: livrar-se de tudo, para que fique unicamente um ser humano frente a outro ser humano.
Isto, porém, conduz-nos a outras perspectivas. Dei-me conta de que existe uma espécie de moinho na vida, como direi, uma engrenagem que nos moe que nos esmaga.
Digamos que eu tenha realizado um espetáculo. A seguir, devo realizar um outro espetáculo, depois outro. Eles podem ser diferentes ou parecidos, mas eu devo conquistar sucesso, devo ter sempre os refletores concentrados sobre mim mesmo ou sobre o meu trabalho.
No fundo, quanta tristeza nisso tudo. É como se a gente estivesse condenada a repetir sempre a mesma coisa.
Um poeta, um verdadeiro poeta, quero dizer, pode escrever quando lhe é possível escrever.
Mas na profissão teatral, tal como ela existe, há essa obrigação contínua de produzir, produzir, produzir. Sentimo-nos obrigados. Então, numa certa época da minha vida eu disse para mim mesmo: não me sinto absolutamente obrigado.
Esta é uma história bastante complexa, e para não repeti-la vou fornecer-lhes apenas uma referência: podem pegar a Drama Review de junho de 1973, onde estão publicados quatro capítulos do meu segundo livro, a respeito desse período de transição no meu trabalho, sob o título The Day that is Holy.
Estes mesmos quatro capítulos foram também publicados pela Gallimard em 1974, sob o título Jour Saint.
Eu me perguntei: o que é que eu estou procurando agora? ( e quando digo "o que é que eu estou procurando", uso com inexatidão essa palavra "eu", porque há bastante tempo o meu papel dentro do grupo não é o de um condutor, e sim o de um catalisador; então, quando falo "o que é que eu estou procurando, quero dizer: "o que é que nós estamos procurando").
Para se viver de maneira digna e honesta, ou, pelo menos, para se viver de modo a estar de acordo consigo mesmo, a gente precisa de um ponto de partida. Não se pode começar sem começo. Há um primeiro passo a ser dado e o ponto em que ele deve começar.
Nós achamos que um lugar como o Instituto do nosso tipo, o Instituto de Pesquisas que temos, o Teatro-Laboratório, pode ser uma ocasião, um pretexto, uma espécie de núcleo a partir do qual poderíamos dar início a um certo tipo de experiências para se viver de acordo consigo mesmo.
Colocamo-nos, com clareza, a pergunta: como evitar essas mentiras a que estamos condenados na vida cotidiana, ou seja, a representação de que falei.
Há muito tempo já, no nosso trabalho artístico propriamente dito, nós não vínhamos mais procurando como representar, mas como renunciar à representação.
Mas agora, há quatro ou cinco anos, começamos a nos colocar a questão de como, fora mesmo do campo artístico, fora mesmo de um efeito ou de um produto artístico, evitar a representação, ou seja, evitar todas as maneiras de nos esconder uns dos outros, evitar de estar o tempo todo disfarçado, de usar máscaras, de usar armas, de estar o tempo todo dentro de um estojo.(existe um conto do Tchecov intitulado O Homem no Estojo).
Estar o tempo todo dentro de um estojo - é muito difícil evitar isso. É preciso um tipo de escolha recíproca de pessoas que inspiram confiança e que tiram o medo.
É necessária também uma grande discrição, porque se a gente bate papo a respeito de tudo, não pode fazer nada de verdadeiro; pois se percebe, no momento de concretizar o ato, que este vai ser objeto de comentários em seguida.
É preciso saber ficar calado, não dizer nada, prestar atenção, observar a discrição recíproca, não julgar os outros; mas também apontar aquilo em que a gente não acredita, dizer: "nisso que você fez, eu não acredito."
Conservamos o hábito de termos uma espécie de empreendimento público, aquilo que se pode ainda chamar de espetáculo.
É uma ação que se passa entre nós, e que inclusive não é mais construída na base de uma peça (o que em si não é importante, porque poderíamos fazê-lo também na base de uma peça escrita).
Lá, as pessoas são aceitas apenas em função dos ingressos que compram, ou seja, por acaso. É um fruto público de alguma coisa que germina entre nós.
Mas fazemos também outras experiências, que acreditamos ser no fundo muito mais importantes.
Trata-se da procura de um encontro entre seres humanos que se podem escolher mutuamente, sem que haja qualquer problema de ingressos, mas apenas o problema da escolha recíproca, de procura de pessoas semelhantes a nós mesmos, dependendo das respectivas necessidades, e fora de quaisquer cogitações de nacionalidade.
Isto se faz como a construção de um míssil de vários estágios.
Ou seja, encontramos primeiro a consciência de como nos libertar do medo que torna a representação entre nós inevitável.
Depois, como fazer para começar a verdadeira comunicação direta.
A seguir, como ser ativo sem cair no caos.
Depois, como chegar a uma total intimidade entre nós sem tratar ninguém como objeto sexual, o que é importante, porque se quisermos fazer esse tipo de pesquisa no nível de casamento grupal, tudo ficará falso.
Deve-se saber muito bem manter o respeito pelo outro, e isso implica que não se considere o outro como objeto de utilização sexual.
Se o conseguirmos, uma total intimidade, um completo despertar, uma maneira plena de nos revelar, se tornarão possíveis, porque não haverá, por parte de ninguém, o medo de ser utilizado.
Também uma plena lucidez de espírito é necessária nesse tipo de pesquisa, precisamente porque estão em jogo forças inconscientes que emanam de nós e nos dominam.
A gente não pode se deixar escravizar por estas forças. Elas são ao mesmo tempo benéficas e perigosas.
Devemos estar totalmente lúcidos. Isto impõe uma outra condição: nada de drogas, nada de álcool no momento em que fazemos esse tipo de trabalho.
Portanto, uma certa ascese é inevitável. Vocês podem achar isso estranho, ou curioso, ou engraçado, mas eu acredito profundamente que o ser humano, pela sua própria natureza, foi criado para ser feliz.
Pela nossa própria natureza, viemos à terra para a experiência da felicidade que partilhamos com os outros.
Esta facilidade será possível, se a busca dela for a mais forte tentação da nossa vida.
Se não nos deixarmos flutuar como a folha ao sabor do vento, se não vivermos correndo de um lado a outro, se soubermos prolongar por muito tempo essa estrada que é a nossa busca, então poderemos tocar essa felicidade.
É provável que existam pessoas, posso mesmo dizer com certeza que elas existem, pois as encontrei na Ásia por exemplo, que são capazes de encontrar essa felicidade na comunhão, ou na comunicação, ou, digamos, na comunidade com um ser sobrenatural que podemos chamar de Deus.
Pessoalmente, ateu que sou, acho que posso encontrar isso unicamente num ser humano, se o estimo e se não quero usá-lo. Pode-se dizer que um outro ser humano é como uns espécie de canyon, é como na montanha, onde existe um muro e existe o canyon e este é um outro ser humano.
Quando atravessamos o verdadeiro encontro, na saída existe uma espécie de felicidade, de alegria, de plenitude e de serenidade.
Mas a gente não atravessa esses encontros de uma maneira unicamente espiritual, quero dizer: mística, no sentido de desencarnada.
Só podemos ingressar neles tais como somos: com a nossa carne, o nosso corpo, os nossos sentidos; devemos ter a coragem de nos aproximar de um outro ser humano tais como somos; como seres carnais, sensuais, espirituais e psíquicos; como seres humanos, no sentido total da expressão.
Todos nós, ou muitos de nós, sonhamos com uma coisa como essa. É como o sonho das ilhas bem-aventuradas, o sonho do paraíso perdido: sempre o procuramos em algum lugar ou em algum tempo longe de nós.
A gente vai para o Tibete, ou para o Nepal, para Khatmandou, ou para a Índia, porque isto é "ir para algum lugar". Eu também fui, muitas vezes.
Encontrei coisas extraordinárias, mergulhei na escória da vida; foi uma aventura, valeu a pena fazê-lo.
Mas é claro que sempre levei consigo todos os meus problemas, porque não existe nenhum Tibete, nenhum país exótico, nenhum país das maravilhas, fora de nós mesmos, e só nós mesmos podemos resolver nossos problemas.
Ou então a gente procura a solução atrás de nós, dizendo que devemos retornar a uma vida próxima da natureza, como se não estivéssemos já completamente formados pela civilização.
Certo, podemos voltar à natureza, mas todos os nossos condicionamentos, com toda a necessidade que temos de certos objetos, de certas facilidades, de certas maneiras de nos comunicar: bem ou mal, para vir até aqui eu peguei o avião, não viajei de fragata.
Mas, apesar de tudo, existem sempre soluções que estão na nossa frente. São essas coisas difíceis de definir, que podemos experimentar nos verdadeiros encontros com os seres humanos, e que poderíamos chamar, de modo não muito válido nem exato, de felicidade, de alegria - é mais próximo da alegria; apesar do fato de que isso é sempre provisório, frágil e vulnerável.
É isso que quero dizer quando falo que um outro ser humano pode ser uma espécie de canyon, é isso que quero dizer quando falo que é como seres humanos totais que podemos aproximar-nos dos outros.
Existe nisso tudo ainda um outro aspecto: o olhar.
Quase nunca olhamos para o outro de modo verdadeiro, quer dizer sem segundo pensamento, sem julgamentos, sem comparações.
E isso ocorre não apenas em relação aos seres humanos: vamos ver uma floresta, e vemos uma árvore, e pensamos: ela pertence a uma espécie de árvores que já vi nesse ou naquele lugar - e não vemos a árvore.
Um dia, na minha vagabundagem pela Ásia, encontrei um homem de origem mongólica, que foi criado, durante toda a sua vida no deserto.
Passamos algum tempo juntos na estrada, vagabundeando (quando digo "vagabundeando", quero usar o sentido direto da palavra: viajando não como turista, mas de modo diferente; esta é uma diferença importante).
Um dia, ele me contou como foi que viu pela primeira vez uma árvore.
Lá onde ele se criara, não existiam árvores; só plantas, uma espécie de mato, mas nenhuma árvore grande.
Quando, pela primeira vez, saiu do lugar onde havia nascido, estava com mais ou menos 17 anos de idade. Estava a cavalo, dirigiu-se para um determinado lugar, orientando-se pelo sol, e viu um ser estranho que surgiu na sua frente: era uma árvore.
Como nunca havia visto uma árvore antes, teve a impressão de que ela estava indo em sua direção, estava em movimento, estava se mexendo; então, ele se pôs em fuga. Foi então que ele viu a árvore, e olhou para ela. Com o olhar para um outro com este aspecto de "nunca antes", este aspecto momentâneo, instantâneo, com essa atenção que não comporta nenhum julgamento, mas que é imediata: você é tal como você é?
Só se o outro não se esconder, em nenhum sentido da palavra, quer psíquico, corporal ou carnal; e se nós mesmos não nos escondermos.
De que modo, então, ver o outro, como olhar para ele?
Com todo o nosso ser, não apenas com os olhos, como se o estivéssemos vendo pela primeira vez.
Se pudermos fazer isso - e é isso que eu chamo olhar - teremos uma revelação.
É como se um crente estivesse encontrado Deus. No momento em que o verdadeiro encontro se torna possível - e esse momento pode existir - apesar desse movimento ser provisório, toda a natureza humana se desencadeia.
Não há o problema das impulsões de corpo, não há limites para as forças do corpo, para a voz.
Tudo está desbloqueado, tudo está vivo. Existem forças que nos transbordam, que nos carregam, há uma espécie de lucidez que é imediato; é como sair de uma caverna em pleno dia, é como ver o mundo pela primeira vez, em todas as suas cores, em tudo aquilo que é palpável, tangível, em toda a sua presença.
É provável que certos seres humanos só possam experimentar isso em relação a um fenômeno da natureza. Eu, unicamente em relação a fenômenos humanos.
A natureza é uma grande coisa, mas o que desencadeia em mim essa possibilidade é sempre outro ser humano.
Se ele procura como eu, se ele não se esconde, se está disposto a assumir os riscos, se vai ao encontro com a uma coisa derradeira, podemos dizer a nós mesmos: talvez vamos morrer neste momento.
E talvez não se trate de uma metáfora, e se morrermos, tudo estará bem.
Quando digo isso, vocês podem acreditar que uso metáforas e símbolos, mas estou dizendo o que sinto, de modo direto.
Quando se chega a esse ponto, o teatro não conta mais como o principal, como objetivo. Sem dúvida, desse tipo de pesquisa pode resultar um produto público, e mesmo, num certo sentido, deve resultar de vez em quando, porque não devemos ficar fechados num só grupo, fazendo uma espécie de conspiração contra o mundo.
Por outro lado, mesmo nessa busca que não se baseia nos princípios do produto público devemos aceitar um certo número de pessoas de fora, precisamente para que não fiquemos trancados.
Tudo isso tem certos aspectos de paradoxo, também porque pode-se dizer que a experiência comporta uma certa noção de vida em comunidade, mas comporta igualmente uma forte necessidade da gente se afastar, se dispersar, não estar em comunidade.
Para nos encontrarmos verdadeiramente, devemos nos afastar.
Para conservarmos a curiosidade recíproca, cada um deve ter também a sua vida particular, enraizada nas condições cotidianas, a sua família, a sua casa, as suas aventuras pessoais.
No fundo, é como um tipo de equilíbrio entre a vida cotidiana e aquilo que a ultrapassa. Aquilo que ultrapassa a vida cotidiana é como o lar, é o que dá forças, é o que dá coragem, apesar de todas as forças das circunstâncias.
Para terminar esta explicação que, bem sei, é extremamente subjetiva, devo pedir desculpas, porque não tenho nenhum método a ensinar, não tenho nenhum conselho a dar aos outros, e não quero ter discípulos, pois ter discípulos é uma coisa que incomoda.
O que procuro são os próximos, os que são próximos de mim em função das necessidades.
Não procuro criar nenhum mito.
Então para evitar o blá-blá-blá - como dizem os franceses - metodológico-técnico, prefiro abordar o assunto tal como sinto, como a coisa mais importante da vida.
A coisa é subjetiva, mas há muitas pessoas que carregam dentro delas os mesmo sonhos, e dizem que o sonho não pode ser realizado.
Aqui está: talvez uma boa razão para se chegar num lugar seja para afirmar que o sonho pode ser realizado.
Porque ele pode ser realizado. É provisório, é frágil, mas pode ser realizado.
Talvez uma boa razão para se chegar num lugar seja para encorajar. Se tenho alguma mensagem para os outros é o encorajamento, unicamente.
Depois de eu ter dito tudo isso, podem perguntar-me:
você acredita, então, no homem, no ser humano?
Não em todos.
Você gosta dos outros?
Não de todos.
Você procura um encontro com cada um dos que procuram?
Nem sempre.
A gente se encontra de acordo com as necessidades, mas não é indiferente com quem a gente se encontra.
Na própria noção da escolha, que num certo sentido é cruel, existe a gravidade da escolha.
Será que eu levo dentro de mim uma certa fé naquilo que disse?
Aquilo que disse foi experimentado.
Não se trata de teoria preconcebida, tive suficientes experiências em torno de tudo isso.
Mas estas experiências me mostraram que o encontro é sempre fraco - no sentido de provisório -, frágil e vulnerável.
Trata-se de uma esperança?
É alguma coisa entre a experiência vivida, entre certas práticas realizadas, e a esperança de se permanecer fiel a elas.
É uma grande tentação que me carrega, e ao mesmo tempo creio que cada um deve ficar fiel a uma única grande tentação. Se quisermos ter muitas tentações diferentes, e se considerarmos todas como da mesma importância, não faremos nada de significativo na vida.
Sem dúvida, a alegria, em certos lugares e momentos, quer dizer riso.
Mas pode-se rir e estar profundamente infeliz.
Existe uma publicidade.
Na nossa época, existe para as pessoas uma certa obrigação de se mostrarem à vontade, de estarem felizes, de sentirem prazer. Mas a felicidade é uma coisa extremamente difícil.
E a estrada que leva a ela exige grandes esforços e muito rigor.
Exige, ainda, uma grande lucidez nas circunstâncias.
Se temos no nosso coração a esperança de realizar alguma coisa que deva ser plena, verdadeira, pura e portanto fantástica, então devemos ser muito realistas nos detalhes cotidianos do nosso comportamento, para não sermos devorados pelo mundo.
Mas, apesar de tudo, nosso sonho pode ser realizado. Podemos encontrar essa felicidade, esse canyon, essa encarnação e esse olhar de que falei, e esse encontro ultrapassa de longe os problemas do teatro enquanto estrutura.
Pode ocorrer no terreno do teatro como pode ocorrer num outro terreno, é mais importante do que toda a criação e ao mesmo tempo, paradoxalmente, freqüentemente é muito criativo. Mas só se não procurarmos ser criativos.
Como morrer sem estar incomodado pela sua vida?
Como morrer sem ter vergonha daquilo que se fez?
Quantos tabus é preciso superar antes de poder morrer sem sentir vergonha?
Isto também é um paradoxo.
Era tudo que tinha a lhes dizer.



* Yan Michlaski (Czestothcowa, Polônia, 1932 - Rio de Janeiro, 1990)
Formado em Direção Teatral em 1958, pela Fundação Brasileira de Teatro/FBT,
Yan trabalhou como ator, assistente e diretor, no Tablado e em outros grupos.
Foi crítico do Jornal do Brasil(1963-1982).
Trabalhou como professor na Escola de Teatro da UNI-RIO
e foi um dos fundadores do Centro de Artes de Laranjeiras/CAL.
Foi o tradutor de O teatro engajado, de Eric Bentley,
e de A linguagem da encenação teatral de Jean-Jacques Roubine.
Publicou: O palco amordaçado e Teatro sob pressão.